6.6.18

Rita Rito | Gestora de Saudades e Mulher Guerreira

Há muitos, muitos anos, foram os nossos blogues que nos juntaram. Durante algum tempo fomos, à distância de posts e comentários, acompanhando a vida uma da outra, até que, um dia, com o abrandamento da presença de ambas nesta rede social, o contacto se perdeu.

Algum tempo mais tarde, algures por 2013, emoldurado em detalhes que não recordo com exatidão, deu-se um reencontro virtual. De lá para cá, não nos largamos mais e, recentemente, com a ajuda de facebook e do instagram, o contacto é quase diário.

Temos até hoje adiado um abraço redondo e apertado. Apesar de tudo sabemos que, de dia para dia, esse abraço demorado está cada vez mais perto de acontecer.

A conversa de Junho é uma conversa muito diferente de todas as que a antecederam. Pela ausência de proximidade física, pelo facto de as fotografias terem sido enviadas por si (lindas! obrigada, minha querida!) e, muito, muito, pelo especial foco que foi dado a uma fase da vida desta minha última convidada. 

Por todas as razões do mundo, sinto-me imensamente honrada e grata por ter aceite imediatamente o meu convite.

Rita Rito, é a (doce)  Senhora que se segue.




És uma Mulher do Norte (gosto tanto das Mulheres do Norte!). Tens Braga por berço e hoje vives na Suíça. O que é que motivou esta mudança? Há quantos anos te mudaste? Fala-me um pouco do que aconteceu e mudou na tua vida nestes últimos anos.

Vivo na Suíça há 6 anos, 6 longos anos. Costumo dizer que emigrar aos quarenta, tinha 38 anos na altura, não é a mesma coisa que emigrar aos vinte, trazes toda uma vida contigo.
O real motivo da minha mudança foi o mesmo que leva tantos Portugueses a deixar a sua casa: pura necessidade. A verdade é que uns anos antes já cá tinha estado, mas não aguentei mais de 6 meses longe dos meus filhos. Voltei a Portugal numa tentativa de “recuperar” uma vida que há muito havia perdido e nessa altura entra o nosso país na dita crise...
Estive mais três anos por Portugal, quase sempre com trabalho, mas numa situação precária, de contratos a termo ou recibos verdes, com renda para pagar e dois filhos. 
Não foi de todo fácil, aliás, confesso que foi o meu filho mais velho que me incentivou a voltar à Suíça. 



Como foi a adaptação? Presumo que os suíços sejam muito diferentes dos Bracarenses. 

A primeira vez que saí de Portugal estava numa relação com o Miguel, com quem casei o ano passado, e que tem sido o meu apoio nestes últimos anos em tudo. Foi fundamental para mim ter o Miguel ao meu lado porque de facto a Suíça é muito diferente de Braga. A saudade é uma coisa muito nossa e tão difícil de gerir, os primeiros tempos foram duros. Os meus filhos são a minha saudade mais difícil e também a melhor. Ao mesmo tempo, são a força que precisei para aguentar e adaptar-me.
Como agora eles também são adultos é um bocadinho menos doloroso, mas sinto a perda de cada chegada e partida. Estas perdas transformaram-nos, acredito que este afastamento os ajudou a crescer mas, bem no fundo de mim, sei que os marcou, marca e marcará para sempre. É uma estranha forma de vida esta, no entanto, são estes filhos que me dão a força que preciso para continuar, espero também eu conseguir dar-lhes alguma.
Quanto aos Suíços, é um povo muito culto e de uma educação esmerada. 
Na Suíça encontrei paz, creio que em Portugal corremos todos demais, nós próprios criamos o nosso stress. Na Suíça as coisas estão de tal maneira organizadas que não vives constantemente sob pressão e há tempo para tudo. 



Tens toda a tua familiar nuclear em Portugal. Como é que se gerem as saudades, à distância?

Na verdade não se gere, vai-se gerindo, é um constante buraco aberto no peito, um desassossego permanente. Sempre que um telemóvel toca fora do horário habitual e vemos um número dos nossos, é um sobressalto.
Sou imensamente grata aos inventores destas novas tecnologias que nos permitem ver os que amamos e que encurtaram as distâncias. Não tens o abraço é verdade, mas ao mesmo tempo penso que se estivesse em Portugal não estaríamos tão presentes nas vidas uns dos outros. Eu e a minha mãe falamos diariamente e várias vezes por dia, por exemplo. 


O que é que mais gostas de fazer, quando regressas? Pensas regressar de vez, algum dia?

Sinceramente e com o intuito suavizar a nossa conversa, a primeira coisa é beber um café bem português, normalmente ainda no aeroporto.
Gosto de abraçar, tenho muitos abraços sempre a minha espera e é tão bom. Sou muito de abraços.
Com o tempo fui apurando e aprendendo o que gosto de fazer sempre que vou. É preciso estabelecer prioridades, porque o tempo é um ladrão que rouba tempo ao próprio tempo.
Adoro estar com os meus filhos, ir a casa do meu filho mais velho e dar colo ao mais novo, estar com os meus pais e irmãos, quando conseguimos conciliar, porque tenho um a viver em Londres e outro em Lisboa. 
Estas são as minhas prioridades. A minha mãe, além de mãe sempre foi e continua a ser a minha melhor amiga. Saímos muito, passeamos, fazemos almoços a duas, vamos às compras juntas, somos confidentes. A minha mãe, como costumo dizer, é a melhor pessoa do meu mundo.
Depois gosto de jantaradas com os amigos, conhecer novos restaurantes, come-se sempre tão bem nesse país. Também depende da altura do ano. No Verão aproveitamos sempre a praia e as esplanadas à beira mar. No Inverno experienciamos outras actividades, mas seja qual for a altura do ano, a família tem sempre prioridade. Vir a casa é regressar à cidade e à casa onde sou sempre feliz, muito feliz. Acalmo o coração e tento aproveitar tudo ao máximo, dou e recebo amor.
Vir a casa é ter mais tempo para mim e para os meus, aproveitar este tempo tão nosso e renovar forças.



Quando te desafiei para esta conversa, propus-te que falássemos de um assunto difícil, íntimo e ainda de certa forma tabu para muitos de nós. Aceitaste e toda a admiração que tenho por ti, há tantos anos, conseguiu aumentar ainda mais. Mais do que fazer-te perguntas sobre o que sentiste e sentes em relação ao caminho dos últimos meses, gostaria que fosses tu a abordar o tema. Primeiro porque acredito que, de certa forma, cada pessoa que vive esta situação a vive física, psicologicamente e emocionalmente de forma diferente. Depois porque também acredito que hoje compreendas profundamente que mensagem é importante transmitires a quem esteja a experienciar o mesmo cenário que tu, seja por o estar a viver na primeira pessoa, seja por ser familiar de alguém que o está a viver.

A palavra Cancro assumiu um papel real na tua vida. Como tem sido viver isso, na primeira pessoa?


Tem sido uma longa e difícil caminhada. Um choque brutal que transformou as nossas vidas para sempre e que nos fez repensar tudo. O cancro não escolhe nem discrimina, é uma doença que pode afectar qualquer pessoa, embora pensemos verdadeiramente que só acontece aos outros. Damos a vida como garantida até ao dia em que percebemos que estamos a prazo, que podemos morrer. Ser confrontado com esse finitude é devastador. Lembro-me perfeitamente do dia em que me deram o diagnóstico: parecia que tudo tinha perdido a cor, o azul do céu ficou cinzento, naquele momento parecia que via tudo a preto e branco. Estava em choque. E esse foi o só o primeiro diagnóstico, dizerem-me que tinha cancro da mama. Seguiram-se dias confusos, sem saber bem o que me estava a acontecer, carregados de idas ao hospital e de exames para confirmar o diagnóstico. Foi tudo vivido a dois, entre mim e o Miguel, porque não queríamos alarmar ninguém antes de termos certezas. Costumo falar com a minha mãe todos os dias e naquela altura deixei de o fazer. Não conseguia simplesmente agir como se nada se estivesse a passar. Há outro motivo muito forte para ter adiado a conversa. A minha avó materna morreu com cancro da mama, tinha a minha mãe 16 anos. Não podia dar-lhe uma notícia destas, via skype, sem um diagnóstico seguro. Na consulta seguinte disseram-nos que faria uma mastectomia e o Miguel achou que era hora de comunicar à minha família. Tremia toda, a voz tremia-me, sentia-me como se estivesse engasgada, com uma bola na garganta. A reação da minha mãe, o pânico quando lhe disse que era cancro, foi tudo muito difícil. Não há formas fáceis de dar uma notícia destas. Seis dias depois estávamos abraçadas no aeroporto. Em lágrimas. Veio a pior das notícias, o dia mais difícil da minha vida. Tinha realizado uma TAC e o médico perguntou-me se alguma vez tinha tido alguma queda, algum acontecimento que justificasse uma mancha que apareceu na coluna. Disse que poderia ser uma lesão antiga e lembrei-me de há muitos anos ter caído nas escadas em casa dos meus pais. Assumi que seria isso, a tal lesão antiga, mas dias depois do primeiro diagnóstico a médica, com as lágrimas nos olhos, deu-nos finalmente a notícia que mudou a minha vida: tinha um cancro de mama metastizado nos ossos (grau IV). Perguntei quanto tempo tinha de vida. Não me lembro de muito mais. Dias depois chegou um telefonema a dizer que afinal não iria ser submetida a uma cirurgia. Num colóquio entre oncologistas para estudar o meu caso, decidiu-se que iria começar um tratamento em Friburgo com um médico que vim a perceber que era o diretor do serviço de oncologia. Com o cancro espalhado, a cirurgia já não era uma solução. Ia ser seguida por uma equipa multidisciplinar, composta por médicos, enfermeiras responsáveis por me administrarem os tratamentos, e até assistentes da Liga contra o cancro. A minha vida seria revista em função da minha doença a todos os níveis, posso dizer-te até financeiramente. O cancro muda todas as regras. Tínhamos, como te disse, um projeto de regressar a 6 anos, mas a doença acabou por suspender os nossos planos. Um cancro metastizado não tem cura, é uma doença crónica, que implica um acompanhamento a cada 2/ 3 meses, novos exames e ajustes nos tratamentos. Hoje vivemos um dia de cada vez. Fui obrigada a parar o meu negócio próprio, está em stand by. As metástases na coluna causam dores horríveis e impedem-me de trabalhar. Por outro lado, deixam-me angustiada, ansiosa perante os novos exames e a possibilidade de um resultado menos bom. Tem sido uma luta diária com muitos altos e baixos, a palavra Cancro tem uma conotação pesada, ainda é tabu falar tão abertamente desta doença. Percebi-o ao longo destes oito meses de doença. Mas tem sido também uma aprendizagem, um auto-conhecimento, o que pensava ser uma sentença de morte passou a ser para mim uma lição sobre a vida, daí partilhar a minha vida nas redes sociais, por exemplo, e ter aceite o teu convite, que muito me honra, para esta entrevista. Espero conseguir transmitir a outras pessoas, mulheres ou homens, que podemos viver de mãos dadas com esta doença. Acima de tudo que é possível reduzir a possibilidade de vir a ter um diagnóstico destes. 



Felizmente, há cada vez mais pessoas a falarem abertamente sobre este assunto - muitas delas figuras públicas - e algumas campanhas - uma delas bastante recente - têm contribuído para que se torne de certa forma mais leve abordar uma doença que tanto peso traz para o próprio e para as famílias. O que achas que há de positivo e o que achas que se podia fazer mais?

Felizmente que há mais pessoas a falarem abertamente, como já disse, só a palavra cancro traz consigo tudo o que de mau possamos pensar, mas na realidade e por muito mau que seja, que é, felizmente há outras pessoas além de mim a encontrarem coisas positivas num diagnóstico de cancro. Aqui há uns meses eu dizia que sou muito mais feliz agora do que era há oito meses atrás e é verdade sabes. Aproveitas a vida tal como ela é, dentro das possibilidades que tens, com verdade e autenticidade, sem desculpas ou subterfúgios para fazer ou deixar de fazer seja o que for. 

Hoje conheço a realidade do serviço de saúde Suíço a este nível, tanto quanto sei, bem diferente do sistema nacional de saúde Português. Por tudo o que tenho lido e visto nas noticias, pelas campanhas que vou acompanhando, julgo haver ainda muito a fazer, mas também considero que estas ultimas campanhas que tenho acompanhado são fortes, verdadeiras e bem direcionadas, pondo o cancro tabu de lado e olhando de frente esta doença que tantos afeta e isso é muito positivo.




As fotografias que enviaste para acompanhar esta conversa são extraordinárias. Pela beleza e pela força que revelam. Pela verdade e pela Luz que transmitem. Diz-se muitas vezes que manter um pensamento e comportamento otimista perante esta doença é determinante em muitos aspetos, nomeadamente na conquista de resultados positivos em cada etapa. Qual é a tua opinião?

É fundamental conseguir manter um pensamento positivo e otimista, não é sempre fácil, mas é fundamental sim. É muito importante manter o foco, criar alguns objectivos, coisas simples, nem que seja impor-nos uma simples caminhada diária. Eu tenho um apoio incrível, tenho o Miguel, que tem sido a minha força. É preciso acreditar, para acreditar tens de ter Fé. Eu resgatei a minha Fé e apoio-me nela e neste amor que me ajuda todos os dias a trocar lágrimas por sorrisos. Acredito também que esta minha forma de estar perante a doença, o apoio incondicional da minha família, a minha atitude face a tudo o que tenho vivido, foram responsáveis pelos resultados positivos que tenho tido.





Pessoalmente, e creio que esse é um sentimento geral, tenho a maior admiração por todos quantos passam por um desafio destes e mantêm um espirito guerreiro e inconformista. Acredito, verdadeiramente, que o caminho é por aí. Mas, ao mesmo tempo, sinto muitas vezes que o pensamento coletivo tende a ser demasiado exigente e até muitas vezes desajustado quando cria a expetativa de que um doente de cancro afaste sempre todos os fantasmas e não tenha dias maus. Como se no fundo precisássemos todos disso, dessa atitude desassombrada, para exorcizar os nossos próprios medos e aliviar o nosso contacto com a dor de quem o vive. E tudo isso parece-me altamente injusto. O doente de cancro, como qualquer doente, como qualquer pessoa, tem o direito a sentir tristeza, desânimo e dúvidas, não tem? Sentes que de alguma forma as pessoas com cancro sentem necessidade de camuflar tudo isso para não serem rotuladas ou para que os outros se sintam mais confortáveis em apoiá-las?

Essa pergunta é verdadeiramente interessante.
Claro que os doentes oncológicos não só têm direito a sentir tristeza, dúvidas, medos, como o sentem verdadeiramente, ainda que o sintam numa solidão que não consigo descrever. 
A minha mãe diz-me frequentemente que eu “estou sempre bem”, que desmistifico e diminuo tudo o que sinto cada vez que falo com os meus filhos, com a minha família. É verdade, dou por mim a fazê-lo, aos meus sempre com o intuito de os proteger, às outras pessoas porque também não gosto que me tratem como uma coitadinha. 
Depois, percebi efetivamente que as pessoas, na sua generalidade, não se sentem confortáveis no apoio aos doentes oncológicos, não sabem como reagir, há pessoas que se afastam mesmo. De princípio não compreendia, hoje aceito melhor, apesar de continuar sem perceber o seu afastamento, felizmente que também conhecemos outras pessoas neste processo todo. 



Ao longo destes meses de tratamento, já conheceste muitas pessoas que estão a viver o mesmo que tu. Há alguma pessoa ou episódio concreto que te tenha marcado de forma especial? Queres partilhar?

Sim algumas, seja conhecer pessoalmente, seja virtualmente, há todo um mundo de doentes de cancro de mama que se apoiam mutuamente no espaço virtual e é muito bom, são pessoas como eu, que passam exatamente pelo que estou a passar. Tenho duas experiências que vivi e que me marcaram.U uma foi no hospital, na sala de espera , foi uma conversa tão interessante que a partir daquele dia decidi que a minha experiência podia, de alguma forma ajudar alguém. A outra experiência foi virtual, uma das minhas “irmãs” de cancro, como me trata. Uma pessoa que “conheci” depois de ter decidido usar o instagram, neste caso, como forma de ajuda a outros doentes oncológicos. 



Como é que que achas que a tua experiência pode ajudar outras pessoas?

Gostava muito que a minha experiência pudesse ajudar. Através das minhas redes sociais, principalmente no instagram, insisto muito no auto-exame da mama, no rastreio mamário (mamografia anual em mulheres acima dos 40 anos) e o exame clínico da mama, realizada por um especialista. A detecção precoce é importantíssima e pode salvar vidas.
Tento também transmitir sempre uma atitude positiva, de forma a que quem me siga consiga perceber o quão importante é termos uma atitude positiva perante a doença, o quanto essa atitude nos ajuda a viver melhor, a ser feliz. 




Agora que a tua vida profissional está temporariamente em stand by, o que mais gostas de fazer e como aproveitas os teus dias? Aí na Suíça, qual é o teu spot preferido?

Gosto muito de escrever. Uns meses depois de ter sido diagnosticada comecei a escrever. É o meu momento de catarse. O momento que exorcizo todos os meus medos e inseguranças. Tento escrever sempre que consigo, há dias em que não consigo, não quero. Aprendi a meditar, comecei com a minha mãe, quando foi ter comigo, logo no início, uma meditação orientada para a respiração, é uma das coisas que me acalma verdadeiramente. Vivo num lugar muito tranquilo, passa um rio ao lado de minha casa e o lugar que mais paz me traz é passear no meio da natureza, adoro fazer caminhadas ali, falo sozinha, falo com Deus, encontro-me. 



Se pintasses um quadro nesta fase da tua vida, o que representarias nele?

Um ponto de Luz.


✩ fim ✩

6.5.18

Project#6 | Mafalda Gomes Ferreira ✩ Menina Traquina e Mulher dos 7 Ofícios


Conheci a Mafalda, por mero acaso, no dia em que não resisti a comprar uma das muitas iguarias que confeciona e comercializa. Nunca esquecerei o deleite que senti ao provar a sua Geleia de Alecrim e foi meio caminho andado para me tornar uma fiel e assídua cliente. Com o andar da carruagem, o tempo tornou-nos amigas. Ficámos visita de casa e hoje, para mim, ela é carinhosamente a Mafarrica. 

Há umas semanas, desafiei-a para ser minha convidada neste projeto que há muito desejava retomar. A pretexto de uma visita às suas bandas, aproveitámos um dos raros dias de amena e quente primavera que tivémos até hoje e fomos a alguns lugares que lhe são especialmente queridos. 

Entre conversas e confidências perfumadas pelo doce aroma das Estevas e a Serra da Arrábida como pano de fundo, Mafalda Gomes Ferreira, é a senhora que se segue.



Sempre que penso em ti, na tua personalidade, há duas coisas em que penso logo: Azeitão e Girafas. 

Conta-me, como é a tua relação com este lugar, com esta serra (Arrábida). De que forma moldaram e moldam a tua personalidade? 

Desde que nasci, os primeiros 2 meses da minha vida foram passados aqui em Azeitão  (onde fui baptizada). Sempre aqui passei férias, durante 22 anos, na quinta da minha Mãe, a Quinta dos Foios que depois por partilhas deixou de ser nossa, e todos os fins de semana vinha cá, almoçar a casa do meu Tio António, que vivia na Quinta de São Simão. 



Esta terra é muito mais a minha terra do que Lisboa. Foi aqui que mais me diverti, foi aqui que fiz corridas por cima de telhados, foi aqui que subi às árvores, que tirei a carta de condução de bicicleta para poder andar na estrada sem apanhar multas. Foi aqui que andávamos de carro sem carta… Foi aqui que passei horas e horas dentro de água na praia, a nadar até à Anicha, a trepar o monte de areia (que já desapareceu) e a vir às cambalhotas por ele abaixo. Foi aqui que saí primeiro à noite, para os bailinhos da Cueca (como se chamavam) e depois para o Seagull. 

Trazíamos sempre imensos amigos de férias connosco, era uma diversão!



O que é que marcou mais a tua infância? 

Ter tido a liberdade de andar sozinha, desde os 5 anos, (ia sozinha para a escola) em que os meus Pais (mais a minha Mãe) me incutiram responsabilidade e me ensinaram o certo e o errado. Apesar de fazermos muitas asneiras, sempre tivemos a noção dos limites, do que era perigoso e não podíamos fazer. 

Andar à solta tanto em Lisboa como aqui em Azeitão, onde á hora que a minha Mãe nos queria em casa tocava um badalo para nos chamar. Quando aquele badalo tocava, os nossos amigos diziam: a vossa Mãe está a chamá-los, vão embora daqui, se não têm o caldo entornado! 

Ter tido uma Mãe fantástica que nos proporcionou o melhor que uma criança pode ter. Que nos deixava fazer asneiras, mas ao mesmo tempo nos obrigava a ser corretos e bem educados e a nunca faltar ao respeito às outras pessoas. Acima de tudo, nunca mentir e assumir as responsabilidades. 



E quem é que marcou mais a tua infância? 

Houve várias pessoas que, por muitos motivos, marcaram a minha infância, mas sobretudo foi um primo meu, que tinha menos um ano e que desde sempre éramos como irmãos. Mais do que irmãos! Depois do 25 Abril, antes de ele ir viver para o Brasil, nós andávamos a planear fugir porque ele não queria ir e eu não queria que ele fosse. Tínhamos a fuga toda montada, mas ficou tudo em águas de bacalhau, porque ele começou a dizer: mas como é que vamos comer? - tínhamos 6, 7 anos - coisa que a mim, nem me passava pela cabeça, aliás assim nem tinha que comer! (o meu maior suplício: a comida e as refeições). 

Por causa desse drama da comida, tinha eu uns 5 anos, o meu irmão 6 o meu primo 4 e a irmã 3, estávamos nos Foios todos de férias, e um dia a empregada deles disse assim: «Hoje o último a acabar de comer não tem um presente». Fiquei tranquila porque o meu irmão ainda era pior do que eu para comer e era sempre o último. Mas naquele dia, em vista de receber um presente, acabou primeiro do que eu. Fui a última. Eles receberam um chupa-chupa e eu recebi uma casca (cabeça) de camarão! Fui para baixo da mesa chorar! (risos)



Eras ( e és) conhecida por Mafarrica, porquê?... Não me digas que com essa cara de santa eras traquinas e fazias muitas tropelias… (rio-me)

Foi a minha Mãe que desde sempre, desde o meu um ano de idade me chamou Mafarrica e toda a família me chamava assim. Só a minha madrinha é que estava sempre a dizer à minha Mãe «não a chames assim, ela não é um diabo!»... Acho que era um diabinho (risos)



E agora sobre as girafas… Na realidade, eu associo-te muito a viagens, porque sei que é uma coisa de que gostas muito e que já viajaste bastante. E sei também que gostas particularmente de alguns destinos onde essas amigas pescoçudas habitam, mas sei que há outra história por trás do teu gosto por girafas, queres partilhar? 

Não tem uma razão específica, talvez por ter tido uma girafa que mordia, em bebé. No liceu chamavam-me girafa e identifico-me com as girafas por terem umas pernas enormes, como eu! 

E talvez por serem habitantes de África, onde assim que tiver umas boas massas, vou! Não sei, mas adoro girafas! Se pudesse metia uma girafa, no jardim lá de casa! (risos)


Fala-me das tuas viagens, por onde é que já andaste, qual foi o país ou lugar que mais gostaste de conhecer e qual é a viagem de sonho que ainda não concretizaste e gostavas de realizar? 

Sem dúvida dois sítios: Africa - Botswana, Moçambique e África do Sul - e Austrália e Nova Zelândia. 

O meu sonho, mesmo, era dar a volta ao mundo, conhecer todas as vilas e aldeias de todos os países. Ainda não ganhei o euromilhões, mas tenho esperança! (risos) 

Não viajei assim tanto. Gostei muito de Itália, estive lá 1 mês. E gostei muito de Paris, onde vivi 8 meses porque estive lá a estudar. E adorei o Peru! Matchu Pichu, sobretudo. 

Perú | Agosto 1997

Itália | Setembro 1989

Paris  | Ano letivo 1990/91 
Les ATELIERS, école nationale de créacion industrielle
Paris | Cidade Universitária - Dezembro 1990 (-17º)



És uma artista, tens alma de artista – cabeça de vento de artista!... (rio-me) - desde quando é que percebeste isso? Porque é que enveredaste por essa área profissional? 

Olha, cabeça de vento desde que me conheço, mas não percebia, tal era a distração! (risos)

Dia sim dia não, tinha que ir ao Sr. Oliveira, a mercearia da esquina, comprar qualquer coisa e quando lá chegava ele dizia assim: «Olá menina o que vem buscar hoje?» Eu pensava um bocado e dizia-lhe assim: «Não me lembro, era qualquer coisa em lata...» 

«- Talvez feijão?... Grão?... 

- Sim, é isso! Uma lata de feijão. 

- Grande ou pequena? 

(Eu como não me lembrava, pedia sempre pequena.) 

- Encarnado ou manteiga? 

(Já me tramou outra vez, pensava) É encarnada e pequena.»

Chegava a casa, levava uma descompostura: «És sempre a mesma coisa, fazes de propósito para não voltares lá, agora vais lá trocar isso. É UMA LATA DE GRÃO GRANDE!» 
O Sr. Oliveira, dizia assim à minha Mãe: «A sua filha, nunca sabe o que vem comprar, nunca vi ninguém assim.» 



Desde sempre que a única coisa que gostava de fazer eram desenhos e trabalhos manuais. Os meus trabalhos de casa e estudos eram sempre desenhar, nunca os fiz, não conseguia era mais forte que eu. 

Passava os dias a desenhar, cortar e colar. Fazia casinhas com janelas de abrir e fechar. Lá dentro desenhava frutas, legumes, flores, sei lá mais o quê! 

Depois no 9º ano, fui fazer testes para ver para o que dava e descobri que era distraída (risos)
A psicóloga perguntou-me assim: «A Mafalda é distraída?» «Não não sou». «Olhe, é tão distraída que nem dá por isso.» 
Eu todos os dias perdia qualquer coisa. O casaco, o saco da ginástica, os livros, etc. O que levava para a escola ou para casa de algum amigo, não voltava comigo. E como comecei a levar raspanetes cada vez piores, adotei uma estratégia: antes de sair de casa, contava o número de coisas que tinha (tipo: pasta+ saco+ casaco+ chapéu = 4 coisas) e antes de sair do liceu ou da escola olhava para min e contava. Só tenho 3 coisas, falta uma. E ia procurar! 



Como foi trabalhar na indústria das faianças e cerâmicas? Do que é que gostavas mais e o que menos te agradava? 

A minha vida profissional começou pela cerâmica. Foi uma experiência de vinte e tal anos. Gostei imenso de trabalhar em e com fábricas de cerâmica. De de certa maneira, fui pioneira na cerâmica utilitária Portuguesa. Era tudo muito “cinzentão” e quando entrei na fábrica Raúl da Bernarda começamos a dar alegria e cor aos serviços de mesa. A modernizar os formatos e a tornar as coisas vendáveis. Gosto imenso de ver o que desenho a sair do forno, a ser moldado e a ser pintado. É um bichinho que ficou cá dentro. 

O mais difícil de trabalhar em fábricas, foi a tentar mudar a mentalidade dos empresários, pessoas muito difíceis de se lidar. Quando o que desenhamos se vende bem – o mérito é deles. Quando se vende mal, a culpa é nossa, dos designers. 

Não ter tido um poiso certo e ter andado 20 anos com a mala às costas para a frente e para trás, foi cansativo e pouco construtivo. Não me casei, não tive filhos, não criei laços nas terras por onde andei. 

E ao fim de vinte anos fartei-me. Fartei-me de nunca pagarem os royalties; de acharem que ganhas muito porque a única coisa que fazes, são uns “bonecos” e eu a ver as fábricas Portuguesas todas a irem pelo cano apesar de tu dizeres, «tem que mudar, tem que fazer peças inovadoras e diferentes»... Consideravam os designers uns seres insignificantes dentro de uma empresa. O resultado está à vista, faliram todas! As que não faliram, estão a fazer agora a mesma coisa que lhes desenhei durante vinte anos. 



Hoje a tua vida profissional é bem diferente. Qual foi o ponto de partida para ideia da tua empresa? 

Foram as farripas de laranja com chocolate. 
Um Natal resolvi que ia fazer farripas para oferecer aos meus primos de Sintra, que estavam sempre a falar que tinham saudades das cascas de laranja que se comiam em Azeitão. 
E lá fui eu para a cozinha inventar. A minha Mãe e uma amiga minha iam provando, até que acertei. A partir daí comecei a inventar coisas que não fossem perecíveis se não as vendesse no dia e comecei a fazer coisas e meter dentro de frascos. 



Se temperasses ou aromatizasses a vida com um dos teus produtos, com qual seria e porquê? 

Seria o doce de Pimento. Porque é encarnado e porque é uma agradável surpresa! (riso)




Se houvesse um lugar que pudesse contar um segredo sobre ti, qual seria? E que segredo era, podes contar? 

Há muitos, aqui em Azeitão. Mas há um em especial, que é aqui por baixo deste moinho. Quando era miúda, passava os dias por aqui, com o meu irmão e os meus primos, a fazer de pequenos vagabundos, de sete ou de cinco. Arranjavámos cordas com roldanas, prendíamos em árvores e saltávamos. A entrar em casas abandonadas pela chaminé, etc. 

Eu e o meu primo Tiago, um dia descobrimos uma plantação de cactos e suculentas e resolvemos apanhar umas. Levamos para casa e demos à minha tia (madrinha, avó do Tiago) ela adorou e então passamos a ir lá todos os fins de semana apanhar mais. 

Um belo dia, uma senhora foi ter com a minha tia e disse-lhe: «Tem que por de castigo os seus netinhos que me andam a roubar as plantas todas que eu ando a plantar.» 

Conclusão, apanhamos um ralhete e acabaram-se as ofertas de plantas! (risos)



Se pudesses viajar numa máquina do tempo, para onde ias, para o passado ou para o futuro? Porquê? E para que momento? 

Sem dúvida para o passado. 

Para onde não sei bem, ia para várias alturas da minha vida, para fazer a mesma coisa mas de maneira diferente. 

Talvez fosse para os 19 anos, para a faculdade tirar arquitectura paisagista ou agronomia, que não fui porque o meu Pai me infernizava a cabeça dia e noite a dizer que não dava dinheiro!



✩ fim ✩




4.4.18

No mundo encantado da Ilustração | Honor C. Appleton { #3 }



Ao contrário do que aconteceu com as outras duas ilustradoras de que já falei aqui, sobre Honor Charlotte Appleton encontrei muito pouca informação. Apenas uma pequena biografia e nem uma única fotografia ou retrato pessoal pintado. 

Sempre que me cruzava com a sua obra, o que mais me atraía na sua estética, e que por isso me levou a ter curiosidade em conhecer melhor a sua história, era o facto de a maioria das suas ilustrações terem quartos de brinquedos como pano de fundo, num universo onde as bonecas e outras personagens assumem um papel ativo, ao melhor estilo do nosso imaginário infantil. Quem nunca falou com a sua boneca preferida, ou não fez festas e casamentos entre os diversos bonecos que moravam nas prateleiras e estantes do quarto?

Mas a verdade é que, devido à escassez de documentação, acabei por não encontrar uma razão especifica para este tema constante do seu trabalho. Resta-me pensar e concluir que essa sua fase de vida foi de tal forma marcante que a influenciou para o resto da vida. Por outro lado, uma das suas mais importantes obras foi a colaboração como ilustradora dos livros da aventureira Josephine e dos seus brinquedos. Isso, só por si, pode ser suficiente para justificar tal acervo.








Honor C. Appleton nasceu em Brighton, Inglaterra, a 4 de fevereiro de 1879.

O que se sabe sobre a génese do seu trabalho como ilustradora é que a sua formação passou pela Escola de Kensington,  pela Frank Calderon's School of Animal Painting e  pela Royal Academy of Arts.

Fortemente influenciada por ilustradores seus contemporâneos como Arthur Rackham , Heath Robinson, Kate Greenaway e Jessie Willcox Smith, Appleton destacou-se num estilo próprio e muito facilmente identificável, pela técnica da aguarela. 

No fim do primeiro ano na Royal Academy, em 1902, publicou o seu primeiro livro de ilustrações com o título "The Bad Mrs Ginger". A esse, e ao longo da sua vida, seguiram-se mais de cento e cinquenta livros ilustrados por si.

A mais conhecida das suas primeiras ilustrações foi criada precisamente para a coleção "Josephine" - as aventuras de uma menina e da sua família de bonecos e as suas façanhas. Eram imagens sobre brincadeiras infantis, estruturadas, intensas e cheias de detalhes, mas com a suavidade conferida pela aguarela, que davam vida aos textos de HC Cradock (1863 - 1941).


A primeira grande ruptura de Appleton no mundo da ilustração foi conseguida com seus desenhos para as Canções de Inocência de William Blake (1910), facto que contribuiu  para sua reputação como ilustradora de primeira classe.



As suas obras mais famosas incluem o "Our Nursery Rhyme Book" (1912), de Charles Perrault (1919) e os contos de Hans Christian Andersen (1922).



Entre 1930 e 1940 a sua técnica desenvolveu-se e Appleton começou a afastar-se das publicações infantis e começou a focar-se nos grandes clássicos da literatura. Nesse contexto, uma boa parte do seu trabalho foi desenvolvido para a "George G. Harrap and Company", uma editora de livros de especialidade, com sede em Londres e Bombaim, entretanto desaparecida.

A famosa ilustradora adorava o sul de Inglaterra, o que a fez permanecer perto de Brighton, em Hove, durante toda a sua vida, cidade de onde só se ausentava em viagens negócios.

Appleton morreu com 71 anos, a 31 de dezembro de 1951. Nessa época, o seu trabalho era de tal forma conhecido e admirado, que a Hove Public Library realizou uma cerimónia de homenagem no ano seguinte.