4.9.15

O charme da vibrante e veraneante Costa Nova


A origem destas deliciosas casas, que mais se assemelham a casinhas de bonecas, remonta ao tempo em que, no início do século XIX, a Costa Nova era um extenso areal desabitado. Foi após a fixação da Barra do Porto de Aveiro, quando os pescadores das campanhas piscatórias de Ílhavo se mudaram para aqui, que começaram a construir-se os “palheiros” onde se guardavam as redes e outros materiais associados à pesca.

Originalmente em tons de vermelho, ocre e preto, os palheiros eram inicialmente amplos e sem quaisquer divisões interiores e, mais tarde, divididos com tabiques de madeira que eram decorados com conchas de ostras. 
Foi com o crescente despertar da moda de ir a banhos que as famílias dos sócios, escrivães e “arrais” de outras companhias foram sendo atraídas para a zona nos meses de verão e outono, transformando-os nos atuais “palheiros”, com riscas coloridas, bem à “moda burguesa de ir a banhos” da segunda metade desse século, para que pudessem servir como habitação na estação balnear.

Após uma certa época de apogeu, a Costa Nova e as suas casas passou por um período de algum abandono, com uma considerável degradação de muitas delas. Felizmente, hoje são exceção os imóveis em mau estado de conservação e o cenário parece mais fruto de um livro ilustrado do que o de uma rua real, no coração do litoral da zona centro. Sem sombra de dúvida um lugar que não se pode deixar de visitar, nem que seja uma única vez na vida.

2.9.15

A Montanha Mágica e uma boa parte de mim


Ainda não era moda gostar de fazer férias em Portugal nem valorizar o que de melhor a hotelaria e a gastronomia portuguesas têm, já os meus pais eram trendy. Na realidade, o pavor da minha mãe a aviões teve um forte contributo na história mas, justiça seja feita, eu sei que, no fundo, no fundo, os meus pais seriam sempre os meus melhores guias turísticos no que toca a "ir para fora cá dentro". E foram.
Por outro lado, aquilo que para muitos era e é monótono e desinteressante, fez e faz parte de uma boa dose das minhas melhores memórias de infância e juventude. Refiro-me ao facto de ter feito, anos a fio, férias de Verão no mesmo lugar. Se é verdade que as rotinas podem ser corrosivas, não é menos verdade que podem ser e são muitissimo estruturantes e alicerçantes na construção do "eu". Não é por acaso que fatores como a segurança e a identidade estão intrinsecamente ligados ao elemento "rotina", não pelo prisma do que se repete sem nexo, mas pela perspetiva do que se retoma como ciclo identificativo e referenciador.
Independentemente de muitos outros lugares que ao longo dos anos, de norte a sul do país, fui conhecendo pela mão dos meus pais, o Caramulo foi sem dúvida o lugar onde se ancoraram de forma intensa e expressiva as minhas maiores e mais saborosas memórias de férias de Verão.
Embora tenha sangue beirão a correr nas veias e tenha tido, durante muitos anos, o privilégio de ser uma menina da cidade que ia passar férias "à terra", no Caramulo, não tinha família nem casa. O nosso porto seguro, era uma Pousada, então pertença das Pousadas de Portugal da Enatur, aliás, a segunda mais antiga entre elas. Era uma pequena casa de campo, onde se impunha o granito, temperada pela quente madeira. A abraçá-la havia uma possante e gigantesca hera, que servia de condominio a muitos ninhos da passarada local. Depois de umas incursões pelo Algarve, na praia da Salema, a que se seguiram as termas de S. Pedro do Sul e das Felgueiras, teria os meus 6 anos quando ali fiz férias pela primeira vez. Apaixonados pela pacatez da Serra, pelo ar puro, pelo aroma da natureza que nos rodeava e pelo sossego da Pousada que, à data, tinha apenas 6 quartos, essa foi a primeira vez de mais de 30 anos ininterruptos de férias no mesmo lugar.
Todos os anos, na mesma altura, eram as mesma caras, as mesmas familias que se reencontravam. A maioria delas, vindas do Porto. A elas se juntavam os habitantes ocasionais do Caramulo, os filhos daqueles que lá trabalhavam, entre os quais duas amigas espanholas, que muitas vezes vinham dar mergulhos com os restantes, para a piscina da Pousada.
A comida era tão caseira como a das nossa casas e muitas vezes eramos nós que escolhiamos o que queriamos almoçar ou jantar. Quando apanhávamos amoras pela serra ou maçarocas de milho verde para assar, era da cozinha que vinham para a nossa mesa, como se de um prato ou sobremesa especial se tratassem. Havias tigelas cheias de Papos de Anjo. Ao pequeno-almoço havia mel da Serra e os corredores de tijoleira cheiravam sempre a cera fresca.
Para a piscina descia-se por um fresco caminho de lajes de lousa, por entre pequenos gafanhotos que saltitavam e lagartixas e lagartos de respeitoso tamanho que fugiam à nossa passagem. Havia abetos e cedros gigantes. Havia Sempre-Vivas, Dálias e Zínias de mil cores, frondosas Hortências e Moedas de Papa. Junto à piscina havia um pequeno riacho que serpenteava entre pedras a onde, depois de apurada a perícia para nos desviarmos das pouco simpáticas urtigas, descíamos para apanhar para dentro de baldes pequenas rãs e girinos, que ao fim do dia devolvíamos à procedência.

Tudo isto fez parte da minha história por mais de 30 anos. Fui, criança, adolescente, jovem adulta, mulher casada e mãe, com este lugar por testemunha. As minhas melhores memórias de férias de Verão foram construídas ali. Uma boa parte das da minha filha, também.

Apesar do ser rotineiro que me habita desde a nascença - não fosse eu Capricorniana - não sou por natureza uma pessoa avessa a mudanças. Aceito como natural o curso da vida, as transformações que nos traz, por dentro e por fora, em tudo o que nos rodeia. Também não sou por natureza uma pessoa agarrada ao passado, sempre a olhar pelo espelho retrovisor na vida ou que goste de entoar a melodia do "oh tempo volta para trás". Talvez por sentir que mesmo nas curvas e contra curvas da vida o meu percurso tem sido feliz e muito enriquecedor, por tudo o que já vivi e com quem já vivi, acho sempre que o caminho se faz é adiante, com olhos na experiência adquirida pelo que já se fez ou viveu, com gratidão por tudo o que a vida já me deu, mas sempre de olhos postos do que de tão bom ou melhor pode vir. Não é por isso que choro, com e sem aspas, o que o tempo fez àquele lugar. 

Quando as Pousadas de Portugal foram adquiridas pelo Grupo Pestana, houve algumas que por não interessarem estrategicamente ao novo proprietário, foram lançadas no mercado para outros compradores. Uma delas foi precisamente a do Caramulo, que acabou por ser adquirida por uma cadeia de hoteis - a mesma que tinha construído na Vila do Caramulo um Hotel recuperando as instalações de um dos muitos sanatórios desativados - cadeia de hoteis essa que estava associada ao Grupo BPN. O resto, mais detalhe pessoal, menos detalhe pessoal, será fácil adivinhar com o que foi público no desfecho deste banco.

Hoje a Pousada, que há cerca de 20 anos tinha ganho mais 5 quartos, está completamente votada ao abandono, desde 2010. Sei por pessoas conhecidas que o seu interior já foi saqueado, o que não é dificil acreditar, dado que as estátuas de granito que lhe conhecia no jardim foram também, como pude constatar.
As ervas daninhas e as silvas tomaram conta dos caminhos e na piscina jaz uma água esverdeada onde nadam alfaiates. As hortências que outrora eram um dos ex libris do jardim morrem hoje à sede, e só a teimosia, de reclamar ser aquele o seu lugar de sempre, as terá tornado tão resistentes ao abandono a que estão entregues, para ainda conseguir florir.
Entretanto, o hotel, que depois de uma morte lenta e de um processo de lay-off, acabou por fechar portas, reabriu no dia 1 de Agosto, com uma gestão duvidosa mas que, ainda assim, tenho fé que recupere parte do que naquela Serra se perdeu. 

Para quem não sabe, e muitos não fazem sequer ideia, a Serra do Caramulo foi a mais importante Estância Sanatorial do país, na época em que a tuberulose dizimava centenas, sem poupar idades ou estratos sociais. Jerónimo Lacerda, médico de Tondela, foi o principal mentor e condutor desta gigantesta unidade de saúde, e ainda hoje a sua família é proprietária de uma parte da Serra, onde habita também uma parte da familia, que é inclusivamente a mesma que possuí desde sempre o Museu do Caramulo. É por isso que sempre nos habituámos a chamar-lhe "A Montanha Mágica", título de uma obra do Nobel da Literatura, Thomas Mann, cuja ação principal se desenrola precisamente num sanatório, nos tempos do apogeu deste flagelo. 

Este é um post longo, muito mais longo do que a maioria dos que escrevi ao longo dos anos por aqui e, seguramente, dos mais longos que escrevi nos últimos largos tempos. Egoisticamente, não o escrevo para nenhum dos que eventualmente tenham a paciência de o ler. Escrevo-o para mim, num dia de desabafo que fui adiando desde a minha última visita, na semana passada. Escrevo-o talvez para a minha filha, que talvez um dia, na minha ausência física o leia, como um registo do que faz também parte da sua história.

Optei por não partilhar imagens do que encontrei abandonado. Essas vieram também comigo, sim, mas do Caramulo quero apenas guardar o que o presente ainda me traz de bom de outros tempos que, por muito que desejemos, já não voltarão. No mesmo Caramulo, reencontrei um dos amigos de sempre, mesmo contra todas as probabilidades, já que para mim o Hotel continuava fechado. E foi por ele, a pedido de outras pessoas que nos conhecem desde há muitos anos, que passei uma noite inesperada por lá. Sem mais do que a roupa que levava no corpo e que seria a mesma com que regressaria nesse dia a Lisboa, depois de ter deixado a minha filha na Costa Nova, corri para o supermercado de sempre e comprei o essencial. O jantar foi surpresa, a conversa foi posta em dia, embora nem todas as novidades fossem boas.

Da Serra trouxe a alma cheia, juntamente com os olhos, que mergulharam no verde de uma floresta que nos últimos anos foi das mais devastadas do país, com perdas de vidas humanas, a acrescer.
Quem não ama a natureza e os seus pulmões, nunca entenderá o valor que tem um raio de sol a penetrar na densidade do verde que nos protege. Uma floresta adulta leva mais anos a formar-se do que uma boa parte das vidas humanas conseguem atingir. Falamos de algo entre 80 a 100 anos. Tudo reduzido a cinzas em dias ou horas. 
Alguém me dizia um dia destes que lera em algum lugar que um dia não existiriam pessoas com memórias de aldeias ou de vida no campo. Farei parte dessa espécie, em vias de extinção. Mas não queria fazer parte dos que terão de "ir para fora lá fora", para respirar o oxigênio que, impunemente, em Portugal todos os anos se vai sonegando ao portugueses, queimando criminosamente os seus mais bonitos e importantes pulmões. As Serras que temos podem não ser tão exuberantes ou gigantescas como tantas outras por este mundo fora. Mas são muito mais bonitas e completas do que uma boa parte deste povo conhece ou supõe. Fazê-las desaparecer do mapa para dar lugar a reflorestação de eucaliptos é garantir um passaporte para um país doente e pobre. É negar qualidade de vida para todos nós e para as gerações que se seguirão.

Finalizo com um texto que escrevi no dia em que, passados 5 anos, voltei a acordar num lugar que cheira a granito molhado e a hera fresca, a bucho e musgo, a carvalho, cedro e pinheiro nórdico. Por enquanto...
Num lugar que, para mim, irá cheirar sempre a boas memórias de infância.

" A paisagem não tem que ser exuberante. O lugar onde se pernoita não tem que ser o mais trendy. A roupa que trazemos no corpo não tem que ser a que preferíamos. Tem que ser nosso. A paisagem, o lugar, a roupa e o momento. Porque o que é nosso não tem que ser perfeito, ama-se, simplesmente. Com todas as suas imperfeições e condicionantes, faz-nos infinitamente felizes, acima das circunstâncias. Não é precisa maquilhagem. Não são precisos filtros"