31.8.14

Agosto, o mês de todos os possíveis



Poucos meses serão tão democratica e transversalmente generosos como o mês de Agosto. 
Cada um de nós, ao longo da vida, tem, vai tendo, os seus meses preferidos. O do seu aniversário, o do nascimento dos filhos, o mês do começo, o mês do meio, o mês do fim. Janeiro, o arranque, um calendário a estrear, novinho em folha. Dezembro, o Natal, o fim de um ciclo. O mês-começo de cada estação e os seus ritos de passagem. Doze possibilidades diferentes a marcar o compasso interior de cada um de nós
A nossa relação com o tempo é afinal uma relação-âncora, uma relação onde nos resguardamos em memórias boas e construtivas. E construtoras. Um porto seguro onde atracamos sempre que necessitamos desenhar acordos, traçar objetivos, encher o peito de ar antes de seguir viagem.

Mas Agosto... Agosto é o mês onde tudo pára e, só por isso, Agosto é o mês que torna tudo possível. Mesmo que não se esteja de férias, mesmo que não se seja particularmente adepto de praia, de calor e até mesmo que não se goste particularmente dele, Agosto é, ainda assim, um mês generoso onde, por nós, ou por força dos que nos rodeiam, tudo abranda, tudo serena.
E num entanto, Agosto é o mês das grandes exaltações. Há mais pele, mais sol, mais sorrisos, mais tempo, mais disponibilidade, mais cumplicidade. Mais entrega.
Em Agosto salpicamo-nos de ócio, mergulhamos em bons momentos, demoramos os sentidos habitualmente desatentos ao que nos rodeia, somos mais connosco e somos mais com os outros.

Creio que não erro se disser que a maioria de nós gosta de Agosto, mas estou absolutamente certa de que não falho se disser que Agosto gosta muito de nós.
Agosto é o mês de todas as possibilidades. Antes ou depois, os meses que o antecedem ou precedem, também podem ser. Mas é Agosto que nos oferece generosamente o seu tempo e o seu coração, para pensarmos nisso.

Partes hoje, querido Agosto, e eu já estou cheia de saudades tuas. 
Obrigada por todo o tempo que passaste comigo! Prometo dar-lhe bom uso.

Crónica dos dias felizes V



- quase a dizer « adeus Agosto, olá Setembro!»

29.8.14

Dear M. [de Mulher] *


Dormes e o teu sono é igual ao que o teu sono sempre foi. Profundo. Sereno. O mundo a poder desabar e tu lá, no teu sono profundo. Inabalável. Em paz. Mas hoje medes todo o sofá, toda a cama tem o teu tamanho certo. Milimétrico. Cresceste.

Cresces. Todos os dias te vejo crescer. Soletras agora todas as letras da maior palavra da vida. A única palavra que salva. A que tudo conhece e tudo cura.
A M O R.
Conheces de cor o som de cada vogal que transporta. A dimensão de cada consoante. As pontes a uni-las. Mãos dadas. A descoberta boa da vida. Tudo tão depressa e tão devagar. É afinal isto, a imensidão finita da adolescência. Tudo eterno num minuto.
Tens o mesmo sorriso de sempre. Doce. Irrequieto. Desafiante. Sereno. E esse brilho. Essa luz, tão tua.

Dormes e o teu sono é igual ao que o teu sono sempre foi. Igual àquele que fiquei a olhar, a ver, a descobrir, a desvendar, nas tuas primeiras horas de vida. És a mesma... e estás tão crescida, filha. Que bom! Que boa é esta viagem contigo!


* for next Vogue Edition ;)

22.8.14

Silêncio*


O silêncio é uma cor. 
Preto. A cor mais escura do espectro. A ausência de luz. A junção de todas as cores. Aquela que absorve todos os raios luminosos e não reflete nenhum. O luto do ocidente.
Branco. A junção de todas as cores do espectro de cores. A cor da luz. Aquela que reflete todos os raios luminosos e que por não absorver nenhum revela a clareza máxima. O luto do oriente.

O silêncio é uma cor.
Preto. Negro. Carregado de dúvidas. O som do medo. O mundo inteiro apagado. Só um ruído ensurdecedor a rasgar as entranhas. O silêncio onde só se escutam palavras obscuras. Mudas. A gritar de dor.
Branco. Luminoso. Pleno de leveza. A vida a acontecer, devagarinho, dentro de nós. O sabor das coisas pequenas, minúsculas que no silêncio ficam maiores. Gigantes. Todas as nuances da vida a habitarem-nos. O mundo a acontecer, por dentro e por fora. A descoberta e seu o sabor.

O silêncio é uma cor. E uma porta.
Se o abrirmos para escutar a vida, liberta. Se o fecharmos sobre nós, encarcera. 
Somos o somatório de todos os silêncios que nos visitam. Mas somos nós que escolhemos aquele que nos habita. A cor que define quem somos.


*white is a beautiful place, to live & love

20.8.14

Crónica dos dias felizes III


- temperados com outro sal -

O Senhor das Andorinhas


Não me recordo como se chamava. Não retive. Apesar de tudo, acho que nenhum nome lhe fica melhor do que O Senhor das Andorinhas.
As festas de Tavira na rua. O mercado de artesanato alinhado na praça. O coreto a meio e ao fundo o antigo Mercado da cidade.
Em escala real, ninhos esculpidos no barro, habitados por crias, ora curiosas, ora suplicantes. Bicos abertos evocando os pais. Soube que era aquele presente que este Verão queria oferecer aos meus.
Na banca, um Senhor sorridente. Apeteceu-me roubar-lhe um bocadinho da sua história e ele consentiu.
Nunca fora artesão, até há 18 anos atrás. Ninguém, nas suas raízes o fora. Não sabia nada da arte de moldar o barro. Vivia mergulhado na informática, nas horas que se consomem num trabalho que realiza mas aliena do resto. Corria atrás do tempo dos outros, na virtualidade de um tempo seu que não o fazia feliz. Um dia, consciente, fechou a porta. Foi assim que o barro da vida que desejava se moldou. Com mais trabalho, com mais dúvidas, com mais incertezas - das outras, das financeiras - mas com uma qualidade de vida de que nunca se arrependeu.
Se outra dúvida existisse, o sorriso, honesto, rasgado, iluminado, foi a chancela.

E as andorinhas... as andorinhas são uma nobre e especial ave. Elegantes, bonitas, felizes. Por muitas milhas que façam, voltam sempre ao mesmo ninho, com o mesmo par, ao longo da vida. Sabem sempre, sempre, o caminho de regresso a casa. Por isso os marinheiros as tatuavam nos braços.
E eu, que sempre disse e digo que nunca farei uma tatuagem - nunca digas nunca, nesta vida! - sei que se alguma vez a fizesse seria o voo de uma pequena e discreta andorinha, símbolo da rota certa e da família, que desenharia na pele.

18.8.14

| O Elogio do Imprevisto

Era manhã cedo, eu a caminho do primeiro café que estava por tomar e um gato caminhava, pachorrentamente, ao lado do dono. Pelo passo e pelo pêlo, percebia-se que era um gato velho, siamês na raça, cão na alma, a contrariar a natureza que a criação lhe deu à nascença. Percebia-se que o fazia há muito tempo, percebia-se que era um ritual familiar. Um pouco mais tarde, ao segundo café, reencontrei-os e não hesitei em roubar um bocadinho daquela história. O dono confirmou. Foi o gato que sempre assim o quis. Sem trelas, nem coleiras. Em total liberdade de escolha e movimentos, pede para ir à rua. Abençoado, penso eu!

Na volta do primeiro café, na esquina de um prédio na fronteira do meu, um asiático faz Tai Chi. Movimentos leves e breves, que desenham a paz do espirito no ar. O balanço do equilíbrio. O silêncio atento da alma. Eu, a passar de carro, mal me demorei nele, mas retive. Nunca o tinha visto por ali, mas até pode ser meu vizinho. Há muitos anos que uns Macaenses têm uma fração autónoma no meu prédio. Costumavam vir uma vez por ano visitá-la, em férias. Há pouco tempo, parecem ter voltado e ter feito dela uma casa. Talvez seja um deles que, de tão discretos, ainda não aprendi a reconhecer nos breves bons dias ou boas tardes que trocamos na entrada. Fiquei com vontade de lhe fazer companhia.

Era meio de tarde e os tratores e o barco que tinha chegado da faina avistavam-se na praia. Há muitos, muitos anos, que não me cruzava com este cenário que me foi tão familiar em dias de semana, nas férias grandes de Verão, na Caparica. Estava na hora da caminhada. Aproveitei para ir apreciar o quadro.
Quilómetros de rede saiam do mar puxados pelo motor e encaminhados pelos braços fortes dos homens da arte. O povo juntava-se em redor. Formou um círculo cerrado quando as redes cheias foram depositadas no areal. O garimpo da prata enredada começou. Detive-me nos caraguejos que escapavam e juntamente com as crianças extasiadas ajudei-os a fugir da matança e a regressar a casa. Um pequeno peixe nas malhas fechadas e eu a tentar com cuidado que se furtasse à má sorte. Pedi-lhe baixinho que me ajudasse. Ficou calmo e ajudou. Foi outra criança que o levou na mão, numa correria desenfreada, para o meio das ondas.
A peixeficina continuava. As cavalas e os carapaus, frescos, frescos, a debaterem-se. Em vão. As redes eram as suas mortalhas. As caixas onde eram acomodados, os seus caixões. 
Num súbito alvoroço, muitas crianças e alguns adultos que lhes pertenciam corriam para a água com pequenos peixes. Suponho que a mão experiente dos carimpeiros dissesse que era justo devolvê-los à natureza porque a sua hora ainda era precoce. A felicidade reinava. De repente, aquelas simples pessoas, pequenas e grandes, eram omnipotentes salvadores. E ato contínuo, a desgraça voltava. As implacáveis gaivotas, ávidas dos despojos, picavam o mar em agressivos voos, mal as mãos pequeninas e grandes depositavam os corpos prateados à beira mar. E roubavam-se, furiosamente, umas às outras. 
Parei. Estaquei. O cenário, o que presenciava, a vida a acontecer e a desacontecer tão depressa perante os meus olhos, era um misto de fascínio, surpresa, espanto e dor. Houve um momento que durou uma eternidade. A surrealidade pintada sobre a minha cabeça. Dezenas, assustadoras dezenas de gaivotas pairavam sobre a minha cabeça. Planavam, como asas delta, vigilantes sobre os movimentos da praça improvisada no areal, à espera das suas desavisadas vítimas. E só eu sei, como se sobrepondo aos dois episódios peculiares da manhã, aquele momento etéreo e imprevisto me encheu a alma e o coração com uma energia inexplicável e coisas bonitas. Sei, sei que parece um exagero, mas sei que hoje, com esta história pequena, ganhei um dia extra de vida.

17.8.14

A estação dos perdidos e achados. O Verão.



O Verão devia ser, não por imposição legal, mas por serena disciplina interior, a estação do pousio. 
O tempo inteiro, todo corrido mas a demorar-se. Sem estilhaços, sem fragmentos, sem interrupções. Só nós, a sermos o que somos. Só os nossos mais perto, em direto, sem fios nem ligações que não fossem as dos braços que se estendem e as dos abraços que se dão. O azul mais indiscreto do céu. A areia nos pés. O sabor das pequenas ondas. O verde pardo de um pinhal. O canto da rola.
Como ambicioso projeto, num pequeno passo, no Verão todos deveríamos poder dispensar o telemóvel.  Desligar a internet. Não ter medo de perder o imediato. Abrir os braços ao incerto. 

Um extenso areal semeado pela maré vazia. As pequenas grandes piscinas que a baixa-mar desenha. As crianças que as vêm habitar em sonoras brincadeiras. Penso e acredito que, à semelhança do que se passa com a televisão a maior parte do tempo, não precisaria de telemóvel para nada. Que o levo apenas comigo porque tenho uma filha e que depois de sermos pais e mães nunca mais nos podemos permitir não estar contactáveis... ato contínuo, sorrio. Os nossos pais não tiveram telemóveis e se algum de nós, na infância, se sentiu desprotegido não foi seguramente por essa ausência, mas pela de afetos. Não havia telemóveis e todos nós sobrevivemos e bem. Aprendemos com essas e outras ausências que a vida é feita de soluções que se encontram a cada momento. Um dia, na beira alta, eu pequenina, o nosso carro ficou sem gasolina. Anoitecia. Estávamos no meio de um pinhal, numa estrada longe de povoações. Não se viam casas nem viva alma. Algum tempo depois, passou um homem numa motorizada. O meu pai fez-lhe sinal, o homem abrandou e depois de saber do que se tratava, deu-lhe boleia. Eu e a minha mãe ficámos a vê-lo ir. Não sabíamos quanto tempo demorava, nem quem era o homem que lhe dava boleia. Se o traria de volta. Podiam ter um acidente. Ao longe, andava um fogo... O meu pai voltou. O carro andou e hoje tenho esta pequena história feita de um medo pequeno que guardo como uma grande história sobre a vida tal como ela é. Sem rede.
Hoje parece que não sabemos nada sobre isso, que desaprendemos que nada nesta vida se controla e muito menos à distância. Empobrecemos. Regredimos. 

Entretanto, uma mão cheia de caranguejos ermitas vai passeando embalada pelas suaves oscilações das pequenas ondas que invadem a piscina de sal onde parei. Um grande, o maior de todos, o rei, a andar depressa. Pego-lhe, brinco com ele segurando-lhe com cuidado. Recolhe. Mergulho-o para que reapareça. Quando o faz timidamente, faço-lhe festas nas pinças. Recolhe novamente. O caranguejo ermita não sabe nada de festas, não sabe o que simbolizam. E provavelmente tem razões de sobra para acreditar que seres da minha espécie não fazem festas aos da sua. Devolvo-o ao seu caminho. Desejo que mais ninguém o veja. Que a curiosidade ou a maldade não o atropelem. Desejo-lhe boa sorte. Mais à frente, são vários os cardumes de pequenas linhas prateadas que se evadem à proximidade dos meus passos. Eu a pensar que a primeira projeção profissional que tive, era tão pequenina, era ser uma daquelas pessoas que faziam o programa d' O Homem e a Terra - o percursor do National Geographic. E eu não sabia nada do que era uma profissão nem que aquilo era uma profissão. Para mim aquilo era uma aventura e uma paixão. Era estar no meio dos bichos, observá-los, conhecê-los, tê-los perto, nem que fosse através de uma curiosa e atenta lente. Anos mais tarde, acabei por descobrir que isso para mim era o sinónimo de profissão, embora a definição não constasse em manual nenhum e menos ainda na lei laboral. Assim como assim, dediquei-me mais à investigação sobre o bicho homem.

Falam por si, as estatísticas. No Verão há mais casamentos, há mais divórcios, há mais reconciliações. Há mais bebés a serem sonhados e desejados e mais crianças a serem concebidas. No Verão as crianças crescem mais. E, ao contrário do que algumas pessoas pensam, no fim do Verão, no regresso a casa, à escola, as crianças gostam que se lhes diga estás tão crescido! estás tão crescida! Sobretudo quando é verdade. E quando somos crianças sabemos sempre quando nos dizem a verdade. Só muitos anos mais tarde começam as dúvidas. No Verão as crianças crescem mais. Todas as crianças crescem mais. Até as institucionalizadas. No Verão temos mais liberdade, saímos mais, mesmo sem nos darmos conta, da zona de conforto. No Verão temos mais pele. É por isso que no Verão até as crianças institucionalizadas crescem mais. No Verão, todas as crianças são, ficam, mais iguais, porque os pais passam a ter um bocadinho menos de importância. Há a liberdade, a ausência de rotinas, todas as coisas diferentes e um mundo por descobrir. O ar, o sol, o mar, o campo abraça-os e até estes meninos crescem melhor porque o Verão os enche de afetos. No Verão, o calor substitui, mesmo sem nos darmos conta, uma boa parte do que nos falta no resto do ano. 

No Verão devíamos, não por imposição legal mas por serena disciplina interior, ser obrigados a perder-nos. A perder-nos no que nos rodeia. A mergulhar mais fundo em nós. No que está perto. No que está ao alcance de um toque, de um olhar, de um cheiro, de um sabor. O Verão devia chamar-se a estação dos perdidos e achados. Porque muitas vezes - tantas vezes - só perdendo nos encontramos. Como os tesouros que o mar perde para nós acharmos. 

E no fim, esta certeza em mim, que não depende de estação. A de que, para além do tempo que dedicamos ao amor dos que amamos e que nos amam, o tempo mais produtivo, o mais bem empregue de todos, é aquele que se detêm naquilo que há milhares de anos nos rodeia. Para além destas duas chaves, não há nenhuma outra que abra verdadeiramente a porta para a condição humana. Tudo o resto, acho eu, é ilusão.


16.8.14

Crónica dos dias felizes II



A viagem dos 100 passos



Sei que a doutrina se divide. Mas, para mim, nunca nenhum filme será o mesmo se não for visto numa sala de cinema. Nunca nenhuma fotografia, nenhuma banda sonora, nenhuma linha ou entrelinha de um guião serão iguais. Nunca. Simplesmente porque o cinema é uma arte. Dizer que ver um filme em casa - por muito home cinema & surround sound de que se munam - é tão bom como vê-lo numa sala com direito a bilhete pago, equivale a dizer que apreciámos um Degas ou um Vermeer por ter feito uma visita virtual ao Louvre. 
Mais. Num bilhete não pagamos só o acesso legítimo a essa arte. Pagamos os silêncios cerrados ou as gargalhadas que se soltam para aliviar a sequência de uma cena mais intensa ou dura. Pagamos o que estamos a ver e a forma como quem nos rodeia o vê. Isso, para mim, não tem preço. 
Só lamento que entretanto paguemos também para ouvir a tortura de quem come pipocas como se fosse surdo. Mas isso, são outros quinhentos.

Por muitas razões somadas - nenhuma delas suficientemente justificativa - tenho perdido alguns bons filmes. Acima de tudo, tinha saudades de entrar no escurinho do cinema e mergulhar num argumento que me provocasse uma viagem. A escolha não podia ter sido melhor.

A viagem dos 100 passos é uma caminhada pelos sentidos. Saboreia-se como um bom prato, com os condimentos certos, na justa medida. E o melhor de tudo? O melhor de tudo é ter sempre uma boa razão para regressar a casa. Um lugar a que pertençamos. À origem do que somos.

14.8.14

Cinema




"A procissão ainda vai no adro". Neste caso, a expressão equivale a dizer que, num livro de 655 páginas, indo apenas na 97, muito há ainda para ler e beber, das linhas e entrelinhas do autor. Mas, numa primeira análise, este Abraço de José Luís Peixoto não me acolheu nem me recolheu, como de resto devem fazer todos os abraços.

Para alguém nascido em 1974, escrever em 2011 um livro recheado de memórias, parece-me, salvo o devido respeito, demasiado ambicioso. E não creio que seja sequer o caso, mas à medida que as percorria, parecia-me um mero exercicio de arquivo, com uma pitada de egocentrismo, sem grande expressão ou relevo literário. Em muitos dos textos - quase pequenas crónicas - senti-me no mero desfiar de um rosário, sem que a narrativa tivesse grande consistência ou interesse que não para o próprio ou para os que lhe são próximos. A escassez de recorte nas palavras, a falta de ritmo ou métrica poética, os textos finalizados a talhe de foice, sem um remate que os envolvesse e ligasse, deixaram-me, frequentemente, desapontada e com um sabor a pouco. A muito pouco, onde se espera muito mais. Será um estilo, dir-me-ão muitos. Será, responderei eu. Mas não aprecio particularmente.

Mas eis que nesta caminhada, que estoicamente levarei até ao fim em busca de uma viragem positiva na opinião formada, me deparo com dois textos que me fizeram revisitar uma boa parte de mim e das minhas próprias memórias. Um chama-se "Cinema". Outro "Fogo". O primeiro leva-me de volta ao cinema Londres e aquele que até hoje digo ser o filme da minha vida: Cinema Paraíso.

Nem eu nem Peixoto somos contemporâneos da realidade de Cinema Paraíso, mas quer eu, quer Peixoto fomos ainda testemunhas dela. Porque o tempo, durante muito tempo, teve tempo e demorou-se. Porque o tempo, durante muito tempo, acompanhou algumas gerações e construíu memórias coletivas que nos alicerçaram como pessoas e como tribos, numa história comum, em experiências que criavam a segurança de laços contínuos. Que bom!

Hoje, tudo mudou. E não foi o tempo. Fomos nós. 
Fomos nós que acelerámos a máquina em busca de um nirvana que não está nas coordenadas que introduzimos no gps com destino à Felicidade. E estamos a descobri-lo, a penosos juros e a penosos passos, numa caminhada que ainda se adivinha longa. 

Nada neste pensamento se opõe ao cinema 3D, em confortáveis cadeiras. Mas talvez não fosse necessário - não era! - matar as nobres salas de cinema das pequenas e grandes cidades. Talvez nada impedisse - nada impede! - que com as novas tecnologias convivesse o cinema ao ar livre, em noites de Verão, nas velhas praças das pequenas vilas do interior, com os velhos pelourinhos como testemunhas.

Se outro mérito não lhe encontrar neste livro, Peixoto levou-me de volta a uma banda sonora que me transporta para outra dimensão e a um filme que fala de tudo o que é o Amor, nas suas mais diversas facetas, ao longo da vida. Só por isso, já lhe fico grata.

Cinema Paraíso não é um filme sobre uma sala de cinema. É um filme sobre o filme de tantas vidas, na presença e ausência de afetos. Nas descoberta e na perda deles, nos encontros e desencontros que nos proporcionam. 
Cinema Paraíso é uma discreta mas sábia ode à vida.

As palavras de Peixoto, seguidas da cena final de um filme que só quem viu percebe o quanto nos marca. A mim, para a vida. E choro, sempre que a revejo, com o espanto e a emoção que a chorei a primeira vez.
(...) "A sala onde passavam os filmes era a mesma onde, de vez em quando, havia bailes. Alguns anos mais tarde, haveria de ser a nossa sala, onde iria aprender as minhas primeiras notas. Primeiro, o solfejo desenhado no ar com o indicador: dó-ó-ó, ré-é-é. Depois, um saxofone antigo, a sofrer durante semanas até ao inicio da primeira melodia. Nessa mesma sala, aos sábados, na parede do fundo, estava um lençol estendido. Depois, filas de cadeira de madeira, as mesmas cadeiras que, durante os bailes, ficavam encostadas às paredes para as mães das raparigas se sentarem. Sentávamo-nos conforme íamos entrando. Não havia lugares marcados. Durante o filme, os rapazes mais velhos davam-nos palmadas por trás da cabeça. Toda a gente falava em voz alta durante o filme, mas eu ficava concentrado a olhar para as imagens riscadas que passavam no lençol. Um feixe de luz, desenhado na escuridão das portadas fechadas das janelas, passava pelo corredor das cadeiras e estendia chineses a lutarem no lençol da parede da Sociedade" (...)